7.8.07

A maldade do mundo

É provável que coisas improváveis aconteçam.
ARISTÓTELES, Poética, 1461b

Isto não é a verdade, apenas aconteceu. Eu adorava a minha mulher, mais do que julgava saber. Mais do que devia poder. Pensar que um dia um de nós morreria já me fazia sofrer. Eu acabava de completar 26 anos, ela ia fazer 23. Deixei-me ficar sentado, apanhei o livro que estava na mesa ao meu lado e quando quis começar a ler não consegui. Não via nada. Não podia ser. Havia qualquer coisa que não estava bem, embora ainda não estivesse a doer. Logo depois começou a doer.

Primeiro deitei-me, depois levantei-me, depois voltei a deitar-me. Sentia-me alguém à espera de ser fuzilado, como se me fosse possível saber o que é estar à espera de ser fuzilado. As balas sem nunca chegarem. Depois adormeci. Fui acordado pelo nome dela e senti medo. Não havia nada que soubesse fazer. Quis voltar a adormecer, em vão. Fui para a sala. Fiquei horas com o telefone ao colo. Quando tocava nunca era quem eu queria que fosse. A certa altura ouvi a voz do meu pai dentro de mim: "Um homem é um homem, um bicho é um bicho" ou coisa do género e resolvi deixar aquela casa. Esperar é um suplício, agir um alívio. Senti-me melhor. Fiz uma mala, grande, vermelha, e fui para o apartamento desocupado de um amigo que estudava em Paris. Sentia-me forte com a minha decisão até notar que não sabia qual era. Deitei-me outra vez. Doía-me por todo o lado. Eu adorava a minha mulher, sem saber porquê. Mesmo quando me confessou, principalmente depois de me ter confessado, estar "perdidamente apaixonada" pelo seu professor. Havia alguma coisa que me forçava a repetir as palavras dela: "É um homem encantador. E escreve maravilhosamente.
Torturei-me noites e dias seguidos. Via-a passear de mãos dadas por um jardim, ele ensinando-lhe o nome das plantas exóticas e depois a fornicar violentamente, o que me excitava e enojava ao mesmo tempo, uma massa mole e esverdeada a escorrer pelas minhas mãos. No sábado em que fez um mês que tinha saído de casa, comprei uma garrafa de vodka com o propósito de celebrar a minha infelicidade. Ao mesmo tempo que ia bebendo, engolia regularmente pastilhas até que lhes perdi a conta. Andava de um lado para o outro eufórico, ria e chorava. Não sentia nada. Estava anestesiado. Estava a despedir-me do mundo, só que não tinha maneira de saber o que era isso.

Chamei um táxi - não estava em condições de conduzir, mesmo se a minha intenção fosse a de acabar comigo - que me levou a um bar da cidade. Não havia ninguém, eram duas da manhã, sentei-me num banco junto ao balcão. Pouco tempo depois chegou uma rapariga com um gorro encarnado. Reconheci-a, mas não saberia dizer de onde. Sentou-se ao meu lado. Não sei o que lhe disse. Coisas que se dizem quando se tem a morte diante dos olhos, se bebeu meia garrafa de vodka e se engoliu uma lâmina de ansiolíticos. Depois ficámos sem trocar palavra uma eternidade, e ela disse: "Vamos embora." Eu segui-a tonto, a cabeça a latejar. Quando já estávamos dentro de um carro perguntou: "Por onde vamos?" e eu respondi: "Por mim, com a graça de deus." Pensou que me referia a um bairro da capital onde se encontra o Panteão Nacional e há um jardim com vista sobre a parte baixa da cidade. Como se pudesse interessar-me por paisagens.

Mal saímos do carro reparei, um pouco abaixo, num letreiro a piscar Residencial Boa Esperança, para onde logo me encaminhei. Sentia-me mal, precisava de me estender. Ela seguiu-me. O quarto tinha uma vista sublime sobre a cidade adormecida. Estupidamente pensei: "Se ainda estou sujeito a impressões estéticas é porque ainda não estou acabado."
E não me lembro de mais porque me estendi sobre a cama e adormeci.

Acordei com as senhoras da limpeza a aspirarem o corredor. Era meio-dia, estava sozinho. Ao meu lado, sobre a cama, numa folha, estava escrito: "Por favor telefona-me. Nem sequer sei o teu nome. Tive de ir porque tenho uma gravação marcada a que não posso faltar." Pensei: "Que horror, se a minha mulher soubesse", e depois lembrei-me que a minha mulher não queria saber de mim. Mas eu continuava a adorar a minha mulher e não existia lugar para mais ninguém.
Não lhe telefonei. Nem ela a mim. Eu não me queria distrair, transferir o meu amor, afugentar a dor com a vaidade.

Telefonei-lhe passadas duas semanas. Disse-me: "Esperei por ti estes dias todos. Tive muito medo que não telefonasses. Preciso muito de te ver." E eu disse: "Às onze, se quiseres, podes ir buscar-me onde me encontraste."

Nessa noite dormimos agarrados enquanto eu pensava unicamente na minha mulher. Na manhã seguinte, ao pequeno almoço, enquanto molhava uma torrada no chá e olhava para uma praia deserta ouvi dizer: "É bom que saibas que estou perdidamente apaixonada por ti." Não respondi.

Começámos a estar juntos todos os dias, ou quase. Ela era muito famosa, o que obrigava a certas precauções e cuidados que ocupavam a minha atenção, me entretinham e me comunicavam um poder de mim até então desconhecido. Olhavam para ela e depois olhavam para mim. Frequentávamos dois ou três restaurantes onde nos reservavam mesas discretas e protegidas. Mesmo assim fomos cercados por um bando de adolescentes saídos sabe-se lá de onde.

Reconheciam-na dentro do carro e começavam a buzinar como se se tratasse de um casamento. Era impossível andar nas ruas sem ser parado por admiradores que pediam autógrafos em maços de cigarros, sobre a pele, onde quer que fosse. Eu achava graça. Tinha menos por onde chorar. Quando a minha mulher que eu adorava veio a saber telefonou-me. Estava furiosa. Gostei de a ouvir assim, como se continuasse a pertencer-lhe.

Eu não estava bem, ainda tinha muitas recaídas. Continuava a ser assolado por uma tristeza que me obrigava a fechar todos os estores e a deitar-me esticado na cama. Quando estava muito mal o corpo que trouxera de novo a voz da minha mulher aparecia, sentava-se ao meu lado no bordo da cama e cantava-me uma cantiga baixinho, de embalar, como se eu fosse um menino perdido e atormentado. Depois deitava-se sobre mim e fazia tudo o que é preciso fazer sem que eu fizesse nada até se ouvirem gritos e, de súbito, um profundo silêncio. Pedia-lhe perdão. Dizia-me que eu não tinha de pedir desculpa de nada, que era bom assim.

Se não fosse ela talvez tivesse morrido, penso nisto muitas vezes. Os joelhos tremiam-me, havia ainda qualquer coisa que me queria sair pela garganta, o coração certamente. A cruel verdade era que, se bem que não acalentasse já qualquer esperança de poder voltar a viver com a minha adorada mulher e gostasse cada vez mais do corpo que me trouxera a sua voz, por quem permanecia perdidamente apaixonado era pela primeira, a que não merecia nada.

Ela propôs-me então que fosse seu motorista e a acompanhasse pelo país. Eu não podia adivinhar que, deixando as estradas principais, a pátria se tornava tão labiríntica, as povoações tinham nomes tão inverosímeis e, sobretudo, que eram habitadas por tanta gente entusiasta de música popular. Na primeira semana estive contaminado por aquela excitação. Como motorista dela eu era já uma pessoa importante, mais importante do que alguma vez tinha sido. Enquanto esperava que o concerto terminasse, na sala reservada, não era raro ouvir perguntar em voz baixa quem eu era, ao que era respondido, com o devido respeito: "É o chofer." Claro que os músicos e restante pessoal sabiam que também éramos amantes. Ao fim da segunda semana já não se aguentava. Tinha vontade de matar, de sabotar, punha bolas de cera nos ouvidos durante os espectáculos. Dava comigo enredado em fantasias nas quais a minha mulher era a protagonista. Uma vez telefonei-lhe só para ouvir a voz dela mais uma vez e depois desliguei. Eu sabia que as coisas não podiam voltar atrás, que nada acontece duas vezes, mas temia que também não estivessem a seguir em frente. Arranjei uma desculpa e fugi.

 Apesar de ter acabado, não deixei de estar em contacto com a mulher que me trouxera de novo a voz da minha mulher. E houve um dia em que dei comigo a desejá-la sem mais ninguém. Reencontrámo-nos por minha insistência e ela disse-me: "Envolvi-me com o meu baterista. Tu sabes como é duro estar em viagem. Tu sabes que eu não consigo estar sozinha. Sou assim."

Regressei a casa só. Em cima da mesa esperava uma carta com remetente de um advogado. Informava-me que a minha mulher tinha feito entrar em tribunal uma acção de divórcio em que era acusado de ter publicamente um caso com uma mulher cujo nome não era mencionado. Não valia a pena defender-me, decidi. Já tinha perdido o bastante. Ouvi a voz do meu pai dentro de mim: "Um homem é um homem, um bicho é um bicho."

Pedro Paixão
in Amor Portátil, 1999