1.8.06

fomos almoçar do outro lado do rio

fomos almoçar do outro lado do rio que separa o sul do norte. ela trazia o cabelo apanhado do lado esquerdo por um travessão um pouco mais escuro do que a cor dos seus olhos castanhos. caminhámos sobre um paredão que era de grandes blocos de calcário. alguns com faces cristalizadas, como restos de manchas de sal. nuvens brancas imobilizadas recortavam o azul sem fundo do céu. talvez cúmulos, não me lembro ao certo da classificação desses seres tão instáveis e frágeis como nós. não ouvíamos os nossos passos, nem o som das ondas pequenas que se desfaziam sobre a areia húmida e brilhante. visto de cima o que se via do mar era transparente como a sua pele descoberta por onde se viam correr veias violetas. não sei de que falávamos se bem que prestasse atenção ao que me ia dizendo. talvez só respondesse para que pudéssemos continuar falando. não estava frio nem calor e como já disse não havia vento. quando parámos foi para voltar para trás, refazendo o mesmo caminho em sentido inverso. continuámos falando. lembro-me com uma nitidez absoluta do seu sorriso feliz e dos seus olhos belos. mas não me lembro de uma só palavra, como se se tratasse de um filme mudo. a certa altura, no entanto, comecei a ouvir os nossos passos e logo depois o barulho da água que estava ali ao nosso lado estendida até ao horizonte, ténue linha de abraço entre duas cores. então ela começou a correr para a frente e depois voltou-se gritando-me que a seguisse não ouvi as suas palavras mas li-as nos seus lábios, (vertigem de toda a paisagem). sorri-lhe e continuei a andar com o mesmo passo. não sei se a cheguei a alcançar.

22.7.06

viajar viajar viajar


De vez em quando, assim de repente, tenho saudades,
de ver coisas pelos teus olhos. A estrada, um quarto
de hotel numa vila de província, estrelas numa noite
muito escura. Penso no teu nariz, do qual gosto muito
e não sei onde estará. Em grande parte o nosso des-
tino não somos nós que o fazemos; em grande parte.
Apesar da angústia e da ansiedade, gostava muito de
viajar contigo. É bom viajar contigo. É preciso continuar
a aprender a viajar viajar viajar viajar viajar.

o teu pedro

11.5.06

Paulo

A primeira vez que dormi com ele foi em Valença. A segunda em Vila Nova de Famalicão. Em Ourique disse-me que não. Podia ter dito: " Sabes, eu gosto muito da Rita", e eu dir-lhe-ia que tudo isso estava muito certo, que estávamos muito cansados, que o melhor era irmos dormir de seguida sem sequer tomar café, que não fazia mal, que aquilo ali era outro planeta qualquer. Mas ele disse: "Sabes, eu tenho a Rita.
Eu não disse nada, senti uma grande raiva crescer dentro de mim, vontade de lhe bater e depois nada disso. Comecei a ficar triste. Disse: "Vou pedir ao rapaz da luz que cuide de mim", sem qualquer convicção. Ele só baixou os olhos e não respondeu. Não tomei café.

Os nossos quartos ficavam um em frente ao outro. Pensei primeiro em bater à porta dele e depois abri a minha. A cama estava feita e vazia. Não tive coragem de a abrir. Voltei para trás e abri a porta do quarto dele. Estava escuro, não se via nada. Mas ele devia estar a ver-me em contraluz. Não sei sequer se disse para eu entrar. Sei que deixei ficar a porta aberta para o corredor e que de repente me senti agarrada. É bom uma pessoa sentir-se agarrada assim no escuro sem ver por quem. Fizemos amor no chão. Fiquei com uma marca nas costas. Com a porta aberta. Sou tão descuidada, meu amor.


Pedro Paixão
in A noiva judia

18.3.06

Ela e só ela

Sabes o que ele me disse? Que aquilo é como a primeira namorada. Adormeces a pensar nela e acordas a pensar nela.
Eu já sabia, já te tinha dito, lembras-te?, eu já sabia mas não queria ter a certeza.
Foi assim. Telefonei ontem à hora do almoço lá para casa e a mãe, devia ser a mãe, era a mãe com certeza, disse-me que ele ainda estava a dormir. Há uma data de dias que não o via, não podia mais. Peguei no carro e fui lá.
Quando cheguei, estava a tomar duche e tive de esperar um bocadinho no quarto dele. Na parede um poster a preto e branco. No chão, a roupa da noite. Entrou silenciosamente. Estava lindo, tão lindo dentro do roupão azul escuro. Nem imaginas como ele é lindo.
Foi tomar o pequeno almoço na cozinha e depois disse-me para voltar com ele lá para cima. Fechou a porta atrás de nós mas não a fechou à chave, mas eu pensei de qualquer modo que ele me ia agarrar, beijar. Eu ainda só dormi com ele duas vezes, mas devia ser proibido fazer amor assim. Agarrou-me por dentro, sabes? Devia ser proibido. Uma pessoa não pode fazer nada.
Mas ele não me agarrou. Tomou um ar sério e disse-me para não ter medo e depois sorriu. Então começou a preparar aquilo. Fiquei muda todo o tempo. Passavam-me coisas tão depressa pela cabeça que eu não conseguia pensar em nada. Não conseguia tirar os olhos daquilo.
Depois arrumou tudo e pôs um disco, como se nada fosse. Eu fiz de conta. Passado um bocadinho chegou um amigo dele, o Tó. Beberam uma cerveja e depois o Tó foi-se embora. Ele voltou a fechar a porta e voltou a preparar aquilo e a fumar aquilo. Para atestar, disse, percebes? Eu não lhe disse nada. Ele gostava mais daquilo do que de mim. Muito mais, tive a certeza. Apeteceu-me chorar mas não chorei. Olhei o Ian Curtis que continuava no seu salto no poster e fiz como se tudo aquilo me fosse indiferente. Uma pessoa consegue.
Mas eu sei muito bem, eu é que lhe sou indiferente. Eu e tudo o resto. Menos aquilo. O que aquilo faz é tornar tudo o resto indiferente, sabes? O verdadeiro inferno.
Não me agarrou. Eu é que tive de o agarrar. Parecia um bebé a sorrir. E eu gosto tanto dele, merda. Despi-o e fiz-lhe amor e foi então, logo a seguir, que ele me disse: "Sabes, aquilo é como a primeira namorada. Adormeces a pensar nela e acordas a pensar nela."

Pedro Paixão
Viver todos os dias cansa, 95

24.2.06

História da princesa moura e do dragão azul

Esta é a história
de uma princesa moura das terras quentes do sul
e de um dragão azul - que era afinal um príncipe
das terras altas do norte

Andava a princesa desaustinada, numa noite de temporal
e absolut vodka, num reino que ficava equidistante.
(Ela não sabia do que andava à procura.)
Entrou na sua carruagem puxada por noventa cavalos e tinha apenas percorrido alguns metros quando se lhe atravessou no caminho um jovem dragão azul com figura de príncipe, molhado como um pinto por causa da chuva que caía muito forte. Ela parou, baixou o vidro da carruagem, e ele quis saber que música vinha ela a ouvir e para onde ia ela àquela hora da madrugada.

Logo aí a moura percebeu que era um dragão azul das terras altas do norte que lhe falava a sorrir, e foi sem ela se dar conta que ele a raptou, convidando-a para sua casa...
Ainda se perderam, porque o belo dragão ainda não sabia de cor o caminho de casa.
Mas a princesa deixou-se levar até ao castelo, feliz por acreditar que o dragão não lhe iria fazer mal - quem sabe seria um príncipe? (Parecia mesmo um príncipe que ela já tinha visto num filme!...)

Encontraram-se numa noite de temporal
entre o norte e o sul
e foi ela que o guiou
sem saber que estava a ser raptada

Quando chegaram ao castelo o príncipe abriu a porta devagar e entraram os dois pé ante pé, pois todos se encontravam já a dormir.
Os aposentos continuavam mergulhados na penumbra da madrugada e a princesa moura ficou a saber que no castelo não havia luz nem água, e por isso foi preciso acender uma vela.
Conversaram de música e cinema durante um bocadinho, mas o dragão dentro do príncipe começou a beijar a moura, que estava cheia de medo.
(Não é todos os dias que uma moura é raptada por um dragão azul das terras altas do norte!...)
E cheia de medo ela se foi entregando devagarinho até deixar de ser princesa, para se transformar numa sereia nos braços do belo príncipe...
Abraçaram-se muito, beijaram-se muito, mas ela temia que o dragão fosse apenas mais um sapo, e lá se ia protegendo como podia, dando muito mas não tudo.
Queria sossegá-lo, ao príncipe, mas o dragão não queria sossegar...

E foi preciso muito carinho e ternura e paciência para adormecer o príncipe e o dragão dentro dele...

Depois a sereia procurou peça a peça as suas roupas espalhadas pelo chão e foi-se vestindo devagar e sem barulho, para não o acordar.
Ela apagou a vela, tapou o príncipe adormecido e beijou-o docemente na face. Ele sorriu, sem abrir os olhos.
E a moura disse "Até logo".
Encantada.

L.A.
Coimbra, 1998

Só uma vez

Coimbra é uma cidade perigosíssima. Nunca se sabe o que pode acontecer. O mais certo é não acontecer nada. É isso que faz aumentar o perigo. Quando as possibilidades se reduzem, a intensidade do que acontece aumenta exponencialmente. Isto é uma teoria que eu tenho e que por vezes se verifica.

Entrei no Captain e vi-o. O amor tinha menos quinze anos do que eu, um menino lindo. E tinha aquele ar escocês porque tinha estado dois anos em Inglaterra a tentar estudar Biologia, mas não tinha aguentado não sei o quê. Quando demos por isso eu já lhe estava a mexer e ele já me estava a mexer. Em Coimbra é perigosíssimo. As noites duram semanas, saltam-se as estações e os corações vêm à boca para se morder. Quando saímos atravessámos um jardim de árvores muito altas e copas muito escuras e levou-me para casa dele. Uma mansão abandonada, sem electricidade nem água canalizada. Tinha chegado há pouco tempo, disse-me ele. Eu não queria saber. Achei um luxo, vinte velas acesas e uma lareira frente à cama para onde me atirou ou onde tropeçámos e caímos. É claro que agora tudo é perigosíssimo e tive de o ir acalmando como pude, devagarinho. O meu menino, eu já gostava tanto dele. E fizemos o que foi possível fazer e é sempre tanto, sempre demais. Por fim adormeceu a falar-me na mãe dele. Depois saí para ir ao encontro do meu marido que me esperava impaciente no hotel, desejando que eu o satisfizesse, o que foi um duplo prazer porque trazia ainda comigo nos olhos fechados o meu lindo escocês.
Em Coimbra é perigosíssimo. Tudo acaba sempre por acontecer. Mas só uma vez.



Pedro Paixão
Nos teus braços morreríamos, 98