27.12.05

helena

Passaram tantos por mim. Porque não ficou nenhum? Para que houvesse um teria que haver todos os outros? Para que esse passasse teriam que passar todos? Teve mesmo que ser assim?

Saio sozinha, encontro alguns amigos nos locais do costume, e volto sozinha. Dói-me muito ver a cama vazia. Parece-me injusto. Cada vez é mais difícil. Vejo as coisas do quarto: a cama branca, as duas cadeiras, as cortinas caídas. Fazem-me sentir como se eu estivesse ali a mais, como se fosse uma intrusa.

Às vezes dormem comigo. Mas é só uma infidelidade que cometem para provarem a si próprios que ainda estão muito agarrados às namoradas. Quando pedem desculpa ainda são mais miseráveis. Fico com os nomes de todas na memória.

Rogo por amor e ninguém me ouve. Mais valia não haver palavras, só suspiros e risos e choros. Talvez alguém ouvisse. Talvez alguém entendesse.

Dou comigo a rezar diante de uma parede de pedra e tenho por única resposta o eco da minha voz. Estou cada vez mais sozinha.

Ninguém me agarra e diz: “Quero-te como não é possível querer mais alguém. Leva-me contigo. Ou então eu levo-te comigo.” Não. Tocam-me mas ninguém me agarra. Querem só tocar. Batem nos vidros, riem-se e eu rio-me. E depois partem.

Estou muito cansada. O meu coração está muito pesado.

Passaram tantos por mim. Porque não ficou nenhum? Teria que ser assim, mesmo assim?



Pedro Paixão
1989

20.10.05

Saudade

Não é um vício, não, é uma vingança. Acontece quando acordo a meio da noite e estico os braços à procura e não sei que estou só. A cama é grande e só do meu lado está desfeita. Acordo à procura do corpo que faz falta e só tenho o meu que está a mais. Fecho os olhos, como se já não estivessem fechados, e o que está dentro de mim é uma ânsia. Então chegam imagens de um corpo antes de saber que é o dele. Um corpo não, pedaços de um corpo, pequenas alucinações. Duas mãos começam a agarrar-me as ancas e uma boca a bafejar-me a cara. É ele que fala. Ouço dizer-me as coisas que me diz e calo-me. Ouço-o chamar os nomes que me chamam e eu vou. Começo a desfazer-me para que me faça. O corpo que eu toco não é de ninguém. Quando não basta, repete, quando não basta repito. E depois há uma coisa que vem de muito longe e não quer acabar de vir. Vem a mim e eu não consigo ir a ela. Estou comigo. Não é um corpo, não. É um fugir. Um barulho. Qualquer coisa assim que vem, que agarra e passa. Um bicho. Não é um corpo não, porque os não há. Às vezes ouço-me gritar, ou julgar que grito e depois fico quieta como se corresse perigo.
Começo a pensar nele e acabo a pensar em mim, os cabelos desfeitos, uma ânsia sem fim.


Pedro Paixão
Vida de adulto, 92

6.10.05

HELENA

Recebo cartas de raparigas de doze anos. Querem ser cantoras e mandam beijinhos. Já não respondo. Teria de ser cruel. De resto ninguém me escreve.
Ninguém me convida que me apeteça aceitar. Saio sozinha, encontro alguns amigos nos locais do costume, e volto sozinha. Dói-me muito ver a cama vazia. Parece-me injusto. Cada vez é mais difícil. As coisas do quarto, a cama, as duas cadeiras, as cortinas caídas fazem-me sentir como se eu estivesse ali a mais, como se fosse uma intrusa.
Às vezes dormem comigo. Mas é só uma infidelidade que cometem para provarem a si próprios que afinal ainda estão muito presos às namoradas. Quando pedem desculpa ainda são mais miseráveis.
E eu continuo a cantar cantigas que só imploram, rogam amor e ninguém me ouve.
Mais valia não terem palavras, só suspiros e gritos e choros. Talvez alguém ouvisse. Talvez alguém entendesse.
É como se estivesse a rezar diante de uma parede de pedra e tivesse por única resposta o eco da minha voz. Estou cada vez mais sozinha.
Depois de cantar ninguém me agarra e diz: “Quero-te como não é possível querer mais alguém. Leva-me contigo. Ou então eu levo-te comigo.” Não. Pedem autógrafos, para as namoradas, ou para os filhos, ou para mostrarem aos amigos. Tocam-me mas ninguém me agarra. Querem só tocar. Batem nos vidros da carrinha, riem-se e eu rio-me.
Estou muito cansada. O meu coração está muito pesado.
Passaram tantos por mim. Porque não ficou nenhum? Para que passasse um teriam que passar todos os outros? Teria mesmo que ser assim?


P.