19.11.16

A culpa foi do John Lennon


Ela tinha-me avisado que tinha uma paixão pelo John Lennon, mas eu ainda não conhecia todas as aplicações que pode ter a palavra paixão e não tinha ficado preocupado. Não sabia que podia ir ao ponto de se preferir um morto a um vivo. Na suave noite em que eu chegava a Londres com o único propósito de a visitar, fugindo três dias ao emprego com consequências que sabia graves e só porque a vontade de estar com ela me doía de tal modo que se tornava insuportável estar sem ela, não sabia, repito, que era sequer possível alguém preferir ficar a mudar de canal, entre os trinta e tal que havia, procurando obsessivamente na televisão qualquer alusão ao meu rival morto, a vir ter comigo que a esperava, tomando de meia em meia hora um ansiolítico, gemendo sozinho sobre uma cama vazia.
Fazia cinco anos que tinham assassinado John Lennon à entrada do Dakota em Nova Iorque e as cadeias de televisão comemoravam à sua maneira enquanto eu expiava uma inimaginável consequência desse inútil crime. Eu nem sabia o que havia de dizer, nem o que sentir.
Como é que eu podia ter ciúmes de uma pessoa que já estava morta há cinco anos? Mesmo que fosse só há um ano. Mesmo que fosse uma pessoa qualquer e não quem era. Eu não podia fazer nada.
O nosso encontro até parecera auspicioso quando a vi ao fundo do corredor - o maior corredor da minha vida - no décimo segundo piso de um hotel do qual não cheguei a saber o nome. Parecia uma cena de filme. Ela a avançar de um ponto escuro, no ponto cego da visão, os dois a caminharmos lentamente um para o outro, com os olhos fixos um no outro, com a emoção a crescer e a sentir-se na pele e o coração a bater para fora do peito. Pelo menos o meu, o dela não sei. Ela não estava à espera que eu viesse, se bem que eu a tivesse avisado. Ela não acreditava em mim. E na primeira frase que me disse sei que já entrou o nome John Lennon mas eu não me preocupei em pedir que repetisse, concentrado como estava em sentir a boca dela dentro da minha, o que impede de falar.
Depois fomos comer "fish and chips" em Piccadilly. Ela bebeu uma cerveja preta e eu uma coca cola que ela quis provar e depois fez uma careta. Depois obrigou-me a ir ver um espectáculo chamado A verdadeira vida de John Lennon, o que me pareceu ser o destino a querer dar cabo da minha breve estadia com a qual tanto tinha fantasiado, mas não era, porque verifiquei já estar em cena fazia meses. No intervalo ofereci-lhe uma t-shirt com a cara dele estampada no algodão negro com aqueles óculos de sol redondos de aros metálicos muito finos, julgando que era o bastante. Mas depois, quando entrámos finalmente no quarto do hotel ela ligou de imediato a televisão e começou a ver de seguida os sucessivos programas sobre o maior músico pop de todos os tempos, enquanto eu lhe implorava em vão que largasse a televisão e viesse ter comigo como eu tinha ido ter com ela, a voar se fosse preciso. Jurei vingar-me.
E quando ela por fim veio ter comigo, sem pedir qualquer desculpa, eu já estava tão exausto que não me lembro do que fizemos, se alguma coisa fizemos ou se simplesmente adormecemos. Sei só que no dia seguinte, depois de um pequeno almoço muito silencioso, já dentro do táxi que me levaria, dois dias mais cedo do que previsto, ao aeroporto de Heathrow, me senti subitamente aliviado como se um enorme peso descolasse do meu coração, preso desde a noite irreal em que a tinha conhecido meses antes e quando olhei para trás ainda a vi, de pé, no passeio a acenar com uma mão. Sorri, mas não respondi. Pensei só no meu amor que vinha a seguir, sem poder saber quando, nem sequer adivinhar a cor dos seus cabelos, brevemente iluminados pelo primeiro sacrifício que por ele fazia e que é sempre preciso fazer, porque o amor vive disso.
Porque o que é preciso, mais do que tudo, é preservar o poder voltar a amar ainda, escrevi-lhe eu num último postal de despedida ao qual nunca ninguém respondeu.

Pedro Paixão
in Histórias verdadeiras

1 comment:

Sara Mota said...

... lindo...

:')**