24.12.16

pirilampo

foi a teu lado que me deitei pela
primeira vez num prado, lembras-te?
foi a teu lado que olhei por várias
vezes o céu enorme e estrelado e me
senti acompanhado.
foi a teu lado que chorei e ri, e quando
me perdi me mandaste tomar um duche
de água fria (por causa da Natureza...)
foi a teu lado que parti vidros e
gritei e depois adormeci sem saber como, encantado.
foi a teu lado, ao teu lado, em teu lado
que cresci e aprendi também a ser assim,
- pirilampo -
aquele que pelo escuro se vai iluminando. p.p.

23.12.16

querido meu menino atormentado

Começámos a estar juntos todos os dias, ou quase. Ela era muito famosa, o que obrigava a certas precauções e cuidados que ocupavam a minha atenção, me entretinham e me comunicavam um poder de mim até então desconhecido. Olhavam para ela e depois olhavam para mim. Frequentávamos dois ou três restaurantes onde nos reservavam mesas discretas e protegidas. Mesmo assim fomos cercados por um bando de adolescentes saídos sabe-se lá de onde. Reconheciam-na dentro do carro e começavam a buzinar como se se tratasse de um casamento. Era impossível andar nas ruas sem ser parado por admiradores que pediam autógrafos em maços de cigarros, sobre a pele, onde quer que fosse. Eu achava graça. Tinha menos por onde chorar. Quando a minha mulher que eu adorava veio a saber telefonou-me. Estava furiosa. Gostei de a ouvir assim, como se continuasse a pertencer-lhe. Eu não estava bem, ainda tinha muitas recaídas. Continuava a ser assolado por uma tristeza que me obrigava a fechar todos os estores e a deitar-me esticado na cama. Quando estava muito mal o corpo que trouxera de novo a voz da minha mulher aparecia, sentava-se ao meu lado no bordo da cama e cantava-me uma cantiga baixinho, de embalar, como se eu fosse um menino perdido e atormentado. Depois deitava-se sobre mim e fazia tudo o que é preciso fazer sem que eu fizesse nada até se ouvirem gritos e, de súbito, um profundo silêncio. Pedia-lhe perdão. Dizia-me que eu não tinha de pedir desculpa de nada, que era bom assim.

19.11.16

A culpa foi do John Lennon


Ela tinha-me avisado que tinha uma paixão pelo John Lennon, mas eu ainda não conhecia todas as aplicações que pode ter a palavra paixão e não tinha ficado preocupado. Não sabia que podia ir ao ponto de se preferir um morto a um vivo. Na suave noite em que eu chegava a Londres com o único propósito de a visitar, fugindo três dias ao emprego com consequências que sabia graves e só porque a vontade de estar com ela me doía de tal modo que se tornava insuportável estar sem ela, não sabia, repito, que era sequer possível alguém preferir ficar a mudar de canal, entre os trinta e tal que havia, procurando obsessivamente na televisão qualquer alusão ao meu rival morto, a vir ter comigo que a esperava, tomando de meia em meia hora um ansiolítico, gemendo sozinho sobre uma cama vazia.
Fazia cinco anos que tinham assassinado John Lennon à entrada do Dakota em Nova Iorque e as cadeias de televisão comemoravam à sua maneira enquanto eu expiava uma inimaginável consequência desse inútil crime. Eu nem sabia o que havia de dizer, nem o que sentir.
Como é que eu podia ter ciúmes de uma pessoa que já estava morta há cinco anos? Mesmo que fosse só há um ano. Mesmo que fosse uma pessoa qualquer e não quem era. Eu não podia fazer nada.
O nosso encontro até parecera auspicioso quando a vi ao fundo do corredor - o maior corredor da minha vida - no décimo segundo piso de um hotel do qual não cheguei a saber o nome. Parecia uma cena de filme. Ela a avançar de um ponto escuro, no ponto cego da visão, os dois a caminharmos lentamente um para o outro, com os olhos fixos um no outro, com a emoção a crescer e a sentir-se na pele e o coração a bater para fora do peito. Pelo menos o meu, o dela não sei. Ela não estava à espera que eu viesse, se bem que eu a tivesse avisado. Ela não acreditava em mim. E na primeira frase que me disse sei que já entrou o nome John Lennon mas eu não me preocupei em pedir que repetisse, concentrado como estava em sentir a boca dela dentro da minha, o que impede de falar.
Depois fomos comer "fish and chips" em Piccadilly. Ela bebeu uma cerveja preta e eu uma coca cola que ela quis provar e depois fez uma careta. Depois obrigou-me a ir ver um espectáculo chamado A verdadeira vida de John Lennon, o que me pareceu ser o destino a querer dar cabo da minha breve estadia com a qual tanto tinha fantasiado, mas não era, porque verifiquei já estar em cena fazia meses. No intervalo ofereci-lhe uma t-shirt com a cara dele estampada no algodão negro com aqueles óculos de sol redondos de aros metálicos muito finos, julgando que era o bastante. Mas depois, quando entrámos finalmente no quarto do hotel ela ligou de imediato a televisão e começou a ver de seguida os sucessivos programas sobre o maior músico pop de todos os tempos, enquanto eu lhe implorava em vão que largasse a televisão e viesse ter comigo como eu tinha ido ter com ela, a voar se fosse preciso. Jurei vingar-me.
E quando ela por fim veio ter comigo, sem pedir qualquer desculpa, eu já estava tão exausto que não me lembro do que fizemos, se alguma coisa fizemos ou se simplesmente adormecemos. Sei só que no dia seguinte, depois de um pequeno almoço muito silencioso, já dentro do táxi que me levaria, dois dias mais cedo do que previsto, ao aeroporto de Heathrow, me senti subitamente aliviado como se um enorme peso descolasse do meu coração, preso desde a noite irreal em que a tinha conhecido meses antes e quando olhei para trás ainda a vi, de pé, no passeio a acenar com uma mão. Sorri, mas não respondi. Pensei só no meu amor que vinha a seguir, sem poder saber quando, nem sequer adivinhar a cor dos seus cabelos, brevemente iluminados pelo primeiro sacrifício que por ele fazia e que é sempre preciso fazer, porque o amor vive disso.
Porque o que é preciso, mais do que tudo, é preservar o poder voltar a amar ainda, escrevi-lhe eu num último postal de despedida ao qual nunca ninguém respondeu.

Pedro Paixão
in Histórias verdadeiras

8.2.14

recado

resposta ao convite para o bife tártaro em casa do António Mexia na quinta do Lambert
1985

4.2.14

Helena, por quem os gregos se bateram

A Helena veio ontem visitar-nos. Telefonou do carro a dizer que vinha a caminho e trouxe o namorado. A Helena que eu não via há muito tempo por preguiça, medo, coisas árduas de lembrar, mal chegou tirou os sapatos e colocou-se em várias posições sobre os sofás da sala enquanto tocava nos assuntos mais diversos.
"A vida é uma coisa muito bonita que se estraga facilmente, tu não achas? Tens visto o nosso amigo João Luís?"
O João Luís há três anos que está fechado em casa, os estores corridos para não saber se é noite ou se é dia. Desde que caiu no patamar das escadas e partiu a mão nunca mais tocou um instrumento. Acredita que no céu vai poder mostrar todas as suas potencialidades. Deus queira.
"Tudo acabou como não devia. Foram sete anos só a viver para aquilo. Foi bom o tempo que dura uma nova paixão, uns seis meses. Depois é um inferno que tu não queres largar nem por nada. Quando entrei na clínica ia a ressacar, era a única, os outros tinham todos tomado a dose da manhã. Hás de me escrever uma canção, que eu quero subir ao palco outra vez. Ouviste?"
E pergunta-me pelo meu irmão Emmanuel que explodiu em casa depois de sete anos a tomar má heroína em vários estabelecimentos prisionais espalhados pelo país. Eu lembro-lhe de há muitos anos ela não me querer senão para chofer e, quando muito, amante ocasional.
"Sobreviver ao sucesso foi mais difícil do que tudo. De resto faço Chi Kung três vezes por semana como uma imperatriz da china imperial. Tu também não estás com mau aspecto. Não tomo comprimidos, detesto todos os químicos e nem quero microondas em casa."
A bela Helena, por quem os gregos se bateram, trazia o cabelo curto, os olhos cansados de ver coisas muito duras de se ver e tinha engordado alguns quilinhos espalhados pelo corpo. O que fazer quando deus nos deu um só talento assim tão grande e não se pode trabalhar?
Não sei o que vai acontecer. Por vezes penso que é bom poder voltar mais uma vez à superfície desta terra e adormeço tão suavemente que nem me dou conta de que partiram.


Pedro Paixão
Nos teus braços morreríamos, 98

26.5.13

Londres

eu e a helena
dentro de um táxi à procura um do outro
tendo dito ao chauffeur que nos levasse a piccadilly
para ver a figura alada que dir-se-ia querer voar
mas que não estava, retirada para reparação.
e toda a praça em obras, do avesso
como nós próprios dentro do táxi
ansiosamente à procura do resto de nós dois
(lembras-te quando dançavas e cantavas para mim
junto ao lugar da praia onde dormimos pela segunda vez,
eu com uma mala encarnada e tão grande que temeste
que me servisse dela para esconder os bocados de ti?)
eu e a helena
junto ao grande mito
maior que tudo
donde saímos sem saber quando nem como nem porquê
e que não continua senão na imaginação dos homens que persistem
em estar alheios a si próprios
tomados pelo poder estranho que põe fora de si
o poder das coisas alheias, estranhas,
que nos faz humanos
participando tanto quanto podemos da parte divina:
eu à espera da helena
que entrou mais uma vez numa daquelas lojas de que há centenas
que vende bugigangas de toda a espécie para os turistas
que querem levar alguma coisa com o nome mágico,
como um tótem, ou simples pedaço daquela cidade gigantesca
e monstruosa que foi cidade do império capital do mundo
noutro mundo que não este
eu e a helena
de novo no mesmo táxi a passar ruas que que não saberemos
mais o nome e gentes que correm mais velozes do que o rio e do que
o tempo
sem nos olharmos de frente, sorrindo, talvez, para o passado
longe, tão longe de nós.
todo o carinho sabia a nostalgia
todos os beijos nos afastavam irremediavelmente.

31.1.12

Menina do Circo

Ela estava a pintar os olhos quase colada ao espelho, como se estivesse à procura de alguma coisa dentro dos olhos, por debaixo das pálpebras, com um lápis de carvão. Primeiro um, depois o outro. Depois voltava ao primeiro.
Cada vez que abriam a porta era uma onda de ruído que entrava pelo quarto e o enchia até ao tecto.
Ele andava de um lado para o outro, como os animais presos, da janela até à parede branca e depois voltava para trás. Não valia a pena olhar lá para fora: fazia demasiado escuro. Se houvesse uma cadeira talvez se sentasse, mas não havia cadeira nenhuma e não ia ficar ali de pé, parado, num sítio qualquer. Ficaria com ar de parvo.
A meio da sala havia uma mesa redonda com coisas para comer e algumas garrafas. Ele não tinha fome nem sede.
Foi então que ela soltou dois gritos muito agudos para desprender a voz. Se calhar para afastar a ansiedade com um susto.
Também ele sentia ansiedade. Como se fosse ele que tivesse de ir cantar para uma pequena multidão impaciente, ele que não sabia cantar, nem para os amigos. "Tudo pronto. Entramos dentro de dois minutos", ouviu dizer ao guitarrista que tinha acabado de entrar. Ela pôs-se de pé. Estava vestida como uma menina do circo que anda sobre os elefantes. Isso enterneceu-o. Aproximou-se dela para a agarrar, para a beijar, mas ela estendeu os braços em frente, afastando-o. Por causa da pintura. E os beijos enfraquecem a voz. Era o que ela costumava dizer.
O guitarrista agarrou na guitarra lacada de vermelho encostada à parede do fundo e saiu.
"Até já, meu menino". E a porta fechou-se atrás dela.
Ele ia continuar o seu inútil passeio entre a janela negra e a parede branca. Contaria as músicas. Sabia que eram treze, porque era sempre assim. Até lá não havia mais nada a fazer.



Tinha a cara húmida e os olhos desbotados. O seu corpo estava quente como uma botija em lençóis frios. Deitada sobre os seus joelhos, o seu corpo enroscado cabia todo. Apesar do barulho quem prestasse atenção podia ouvir a sua respiração ofegante. Mas só um prestava atenção: o que a tinha assim ao colo como uma criança. Apeteceu-lhe ficar assim, indefinidamente ausente, mas era preciso partir. As luzes iam-se apagando aos poucos, enquanto a pequena multidão se desfazia muito lentamente sem trocar o caminho de suas casas.
Era muito tarde. Alguém disse que o carro já tinha chegado. Ele agarrou nela como num embrulho frágil e deitou-a no banco de trás. Foi também ele que fechou a porta. Alguém gritou o nome dela do escuro e o carro pôs-se em movimento.
A primeira à direita, a terceira à esquerda e depois entraram numa floresta de eucaliptos, silenciosa, durante alguns quilómetros. De vez em quando ele espreitava pelo espelho retrovisor, que tinha ajustado, para a poder ver, imóvel, estendida sobre o banco, e depois voltava a olhar para a frente descobrindo a estrada iluminada pela luz branca dos faróis. Aliás de noite nada tem cor, a não ser os sonhos dela que ele não podia ter a certeza de querer adivinhar.
A certa altura ele começou a assobiar muito baixinho. Voltou a calar-se e depois chamou pelo nome dela, mas sem que ela o ouvisse. Só para dizer o nome dela. Nisto ocorreu-lhe, por absurdo, a ideia de que alguém tinha morrido e que transportava consigo esse cadáver do qual era necessário desfazer-se urgentemente. Quase sentiu medo. Foi então, bruscamente, que uma mão lhe aflorou a nuca e ouviu uma voz que dizia: "Meu menino, meu menino".


Pedro Paixão
in A noiva judia

21.11.09

eu e a helena

eu e a helena
a descer de costas para o tamisa
(os carros quase nos atropelaram insistindo em vir em sentido contrário)
eu e a helena
a descer rapidamente de costas para o rio, lá ao fundo
eu e a helena buscando refúgio na igreja da abadia que há perto do rio -- mas nós não íamos juntos --
fechados, eu comovido até às lágrimas,
parvamente, por causa de tantos nomes ilustres
e ela a dizer-me que havia ali demasiados mortos e que sufocava
eu e a helena não no centro do mundo -- pois que não há --
mas num umbigo do mundo
com a história a pulsar por todos os respiradores que saem do chão
(como em nova york mas sem fumo)
com todas as raças de todos os catálogos, todas as línguas que começaram em babel,
vendendo de tudo e comprando de tudo -- só não a alma que se não pode por estar colada ao corpo.
na confusão de ser quase nada ou simplesmente "um sonho sonhado por alguém"
eu e a helena
depois de a ter procurado e desistido de a procurar e depois encontrado num corredor, de um hotel, sem começo nem fim.
(e nem correu para mim nem eu para ela, antes esperámos que nos aproximassem os passos)
sem saber falar mais a nossa língua,
atrapalhado, sem conseguir contar as peripécias da viagem de quem nunca gostou de viajar por ser alheio a toda a forma de curiosidade e quando viajou foi só por paixão.
(houve um tempo em que ela me olhava como se eu fosse o único, eu, o único, pobre de mim que sei da minha miséria como ninguém da sua)
eu e a helena sem a helena e sem mim
em londres
os dois a dizerem-se, desajeitadamente, cada um à sua maneira, a Deus.

16.1.08

O João no hospital

Eu brincava com os dedos grandes dos pés dele, por debaixo dos lençóis todos brancos, enquanto ele dizia disparates, só disparates.

- Por ti deixava de roer as unhas e pintava-as de amarelo. Por ti sacrificava a minha pomba favorita. Tornava concretas todas as minhas ânsias. Por ti fazia tudo, menos que de mim fizesses outro.

Entretanto a fama da sua beleza percorria os corredores assépticos. Insistia em que eu lhe cortasse o cabelo, a ele que já nem sequer andar sabia. Por vezes duas facas espetavam-se-lhe nas costas e fazia uma careta que logo desfazia.

Eu continuava a brincar com os dedos grandes dos pés dele. Ele era como o mel e ninguém sabia porquê. Eu sim. Eu era a abelha subindo no ar que iria com ele até ao fim de tudo.

P.P.
Histórias verdadeiras,94

7.8.07

A maldade do mundo

É provável que coisas improváveis aconteçam.
ARISTÓTELES, Poética, 1461b

Isto não é a verdade, apenas aconteceu. Eu adorava a minha mulher, mais do que julgava saber. Mais do que devia poder. Pensar que um dia um de nós morreria já me fazia sofrer. Eu acabava de completar 26 anos, ela ia fazer 23. Deixei-me ficar sentado, apanhei o livro que estava na mesa ao meu lado e quando quis começar a ler não consegui. Não via nada. Não podia ser. Havia qualquer coisa que não estava bem, embora ainda não estivesse a doer. Logo depois começou a doer.

Primeiro deitei-me, depois levantei-me, depois voltei a deitar-me. Sentia-me alguém à espera de ser fuzilado, como se me fosse possível saber o que é estar à espera de ser fuzilado. As balas sem nunca chegarem. Depois adormeci. Fui acordado pelo nome dela e senti medo. Não havia nada que soubesse fazer. Quis voltar a adormecer, em vão. Fui para a sala. Fiquei horas com o telefone ao colo. Quando tocava nunca era quem eu queria que fosse. A certa altura ouvi a voz do meu pai dentro de mim: "Um homem é um homem, um bicho é um bicho" ou coisa do género e resolvi deixar aquela casa. Esperar é um suplício, agir um alívio. Senti-me melhor. Fiz uma mala, grande, vermelha, e fui para o apartamento desocupado de um amigo que estudava em Paris. Sentia-me forte com a minha decisão até notar que não sabia qual era. Deitei-me outra vez. Doía-me por todo o lado. Eu adorava a minha mulher, sem saber porquê. Mesmo quando me confessou, principalmente depois de me ter confessado, estar "perdidamente apaixonada" pelo seu professor. Havia alguma coisa que me forçava a repetir as palavras dela: "É um homem encantador. E escreve maravilhosamente.
Torturei-me noites e dias seguidos. Via-a passear de mãos dadas por um jardim, ele ensinando-lhe o nome das plantas exóticas e depois a fornicar violentamente, o que me excitava e enojava ao mesmo tempo, uma massa mole e esverdeada a escorrer pelas minhas mãos. No sábado em que fez um mês que tinha saído de casa, comprei uma garrafa de vodka com o propósito de celebrar a minha infelicidade. Ao mesmo tempo que ia bebendo, engolia regularmente pastilhas até que lhes perdi a conta. Andava de um lado para o outro eufórico, ria e chorava. Não sentia nada. Estava anestesiado. Estava a despedir-me do mundo, só que não tinha maneira de saber o que era isso.

Chamei um táxi - não estava em condições de conduzir, mesmo se a minha intenção fosse a de acabar comigo - que me levou a um bar da cidade. Não havia ninguém, eram duas da manhã, sentei-me num banco junto ao balcão. Pouco tempo depois chegou uma rapariga com um gorro encarnado. Reconheci-a, mas não saberia dizer de onde. Sentou-se ao meu lado. Não sei o que lhe disse. Coisas que se dizem quando se tem a morte diante dos olhos, se bebeu meia garrafa de vodka e se engoliu uma lâmina de ansiolíticos. Depois ficámos sem trocar palavra uma eternidade, e ela disse: "Vamos embora." Eu segui-a tonto, a cabeça a latejar. Quando já estávamos dentro de um carro perguntou: "Por onde vamos?" e eu respondi: "Por mim, com a graça de deus." Pensou que me referia a um bairro da capital onde se encontra o Panteão Nacional e há um jardim com vista sobre a parte baixa da cidade. Como se pudesse interessar-me por paisagens.

Mal saímos do carro reparei, um pouco abaixo, num letreiro a piscar Residencial Boa Esperança, para onde logo me encaminhei. Sentia-me mal, precisava de me estender. Ela seguiu-me. O quarto tinha uma vista sublime sobre a cidade adormecida. Estupidamente pensei: "Se ainda estou sujeito a impressões estéticas é porque ainda não estou acabado."
E não me lembro de mais porque me estendi sobre a cama e adormeci.

Acordei com as senhoras da limpeza a aspirarem o corredor. Era meio-dia, estava sozinho. Ao meu lado, sobre a cama, numa folha, estava escrito: "Por favor telefona-me. Nem sequer sei o teu nome. Tive de ir porque tenho uma gravação marcada a que não posso faltar." Pensei: "Que horror, se a minha mulher soubesse", e depois lembrei-me que a minha mulher não queria saber de mim. Mas eu continuava a adorar a minha mulher e não existia lugar para mais ninguém.
Não lhe telefonei. Nem ela a mim. Eu não me queria distrair, transferir o meu amor, afugentar a dor com a vaidade.

Telefonei-lhe passadas duas semanas. Disse-me: "Esperei por ti estes dias todos. Tive muito medo que não telefonasses. Preciso muito de te ver." E eu disse: "Às onze, se quiseres, podes ir buscar-me onde me encontraste."

Nessa noite dormimos agarrados enquanto eu pensava unicamente na minha mulher. Na manhã seguinte, ao pequeno almoço, enquanto molhava uma torrada no chá e olhava para uma praia deserta ouvi dizer: "É bom que saibas que estou perdidamente apaixonada por ti." Não respondi.

Começámos a estar juntos todos os dias, ou quase. Ela era muito famosa, o que obrigava a certas precauções e cuidados que ocupavam a minha atenção, me entretinham e me comunicavam um poder de mim até então desconhecido. Olhavam para ela e depois olhavam para mim. Frequentávamos dois ou três restaurantes onde nos reservavam mesas discretas e protegidas. Mesmo assim fomos cercados por um bando de adolescentes saídos sabe-se lá de onde.

Reconheciam-na dentro do carro e começavam a buzinar como se se tratasse de um casamento. Era impossível andar nas ruas sem ser parado por admiradores que pediam autógrafos em maços de cigarros, sobre a pele, onde quer que fosse. Eu achava graça. Tinha menos por onde chorar. Quando a minha mulher que eu adorava veio a saber telefonou-me. Estava furiosa. Gostei de a ouvir assim, como se continuasse a pertencer-lhe.

Eu não estava bem, ainda tinha muitas recaídas. Continuava a ser assolado por uma tristeza que me obrigava a fechar todos os estores e a deitar-me esticado na cama. Quando estava muito mal o corpo que trouxera de novo a voz da minha mulher aparecia, sentava-se ao meu lado no bordo da cama e cantava-me uma cantiga baixinho, de embalar, como se eu fosse um menino perdido e atormentado. Depois deitava-se sobre mim e fazia tudo o que é preciso fazer sem que eu fizesse nada até se ouvirem gritos e, de súbito, um profundo silêncio. Pedia-lhe perdão. Dizia-me que eu não tinha de pedir desculpa de nada, que era bom assim.

Se não fosse ela talvez tivesse morrido, penso nisto muitas vezes. Os joelhos tremiam-me, havia ainda qualquer coisa que me queria sair pela garganta, o coração certamente. A cruel verdade era que, se bem que não acalentasse já qualquer esperança de poder voltar a viver com a minha adorada mulher e gostasse cada vez mais do corpo que me trouxera a sua voz, por quem permanecia perdidamente apaixonado era pela primeira, a que não merecia nada.

Ela propôs-me então que fosse seu motorista e a acompanhasse pelo país. Eu não podia adivinhar que, deixando as estradas principais, a pátria se tornava tão labiríntica, as povoações tinham nomes tão inverosímeis e, sobretudo, que eram habitadas por tanta gente entusiasta de música popular. Na primeira semana estive contaminado por aquela excitação. Como motorista dela eu era já uma pessoa importante, mais importante do que alguma vez tinha sido. Enquanto esperava que o concerto terminasse, na sala reservada, não era raro ouvir perguntar em voz baixa quem eu era, ao que era respondido, com o devido respeito: "É o chofer." Claro que os músicos e restante pessoal sabiam que também éramos amantes. Ao fim da segunda semana já não se aguentava. Tinha vontade de matar, de sabotar, punha bolas de cera nos ouvidos durante os espectáculos. Dava comigo enredado em fantasias nas quais a minha mulher era a protagonista. Uma vez telefonei-lhe só para ouvir a voz dela mais uma vez e depois desliguei. Eu sabia que as coisas não podiam voltar atrás, que nada acontece duas vezes, mas temia que também não estivessem a seguir em frente. Arranjei uma desculpa e fugi.

 Apesar de ter acabado, não deixei de estar em contacto com a mulher que me trouxera de novo a voz da minha mulher. E houve um dia em que dei comigo a desejá-la sem mais ninguém. Reencontrámo-nos por minha insistência e ela disse-me: "Envolvi-me com o meu baterista. Tu sabes como é duro estar em viagem. Tu sabes que eu não consigo estar sozinha. Sou assim."

Regressei a casa só. Em cima da mesa esperava uma carta com remetente de um advogado. Informava-me que a minha mulher tinha feito entrar em tribunal uma acção de divórcio em que era acusado de ter publicamente um caso com uma mulher cujo nome não era mencionado. Não valia a pena defender-me, decidi. Já tinha perdido o bastante. Ouvi a voz do meu pai dentro de mim: "Um homem é um homem, um bicho é um bicho."

Pedro Paixão
in Amor Portátil, 1999

7.1.07

HOMO, de Paul Valéry

"Voir ce que le monde peut voir et ne voit pas."
"Savoir ce n'est jamais qu'un degré pour être."
"La gloire est l'effet que produit ce qui n'est possible sur ceux à qui il est impossible."
"Un esprit est clair quand il ne croit pas comprendre ce qu'il ne comprend pas."
"Rien de beau ne se peut résumer."
"Le travail sacré de l'homme: se reconstruire."
"Le plus grand plaisir est l'approche du plaisir."
"Un homme est une chose à qui arrive d'être esprit."
"On n'arrive au sommet de soi-même que par le détour et le secours des autres."
"La violence est une forme de bêtise."

4.1.07

as nossas almas saberão de nós

Querida Helena,
ver-te não é como ver qualquer pessoa, é ver-me pelos
teus olhos.
O que vivemos foi demasiado belo para que nos arrisquemos
a perdê-lo na indiferença.
É assim preciso a coragem que torne o nosso afastamento
tão belo como o nosso encontro.
Só o silêncio nos poderá agora ajudar. O silêncio preservar-
nos-á dentro de nós, no sítio onde nos encontrámos e
onde continuaremos juntos, muito quietos, a olhar-nos fixamente
nos olhos.

Nós não, mas as nossas almas saberão de nós.

P.

Lisboa, 17 de fevereiro 1986

1.8.06

fomos almoçar do outro lado do rio

fomos almoçar do outro lado do rio que separa o sul do norte. ela trazia o cabelo apanhado do lado esquerdo por um travessão um pouco mais escuro do que a cor dos seus olhos castanhos. caminhámos sobre um paredão que era de grandes blocos de calcário. alguns com faces cristalizadas, como restos de manchas de sal. nuvens brancas imobilizadas recortavam o azul sem fundo do céu. talvez cúmulos, não me lembro ao certo da classificação desses seres tão instáveis e frágeis como nós. não ouvíamos os nossos passos, nem o som das ondas pequenas que se desfaziam sobre a areia húmida e brilhante. visto de cima o que se via do mar era transparente como a sua pele descoberta por onde se viam correr veias violetas. não sei de que falávamos se bem que prestasse atenção ao que me ia dizendo. talvez só respondesse para que pudéssemos continuar falando. não estava frio nem calor e como já disse não havia vento. quando parámos foi para voltar para trás, refazendo o mesmo caminho em sentido inverso. continuámos falando. lembro-me com uma nitidez absoluta do seu sorriso feliz e dos seus olhos belos. mas não me lembro de uma só palavra, como se se tratasse de um filme mudo. a certa altura, no entanto, comecei a ouvir os nossos passos e logo depois o barulho da água que estava ali ao nosso lado estendida até ao horizonte, ténue linha de abraço entre duas cores. então ela começou a correr para a frente e depois voltou-se gritando-me que a seguisse não ouvi as suas palavras mas li-as nos seus lábios, (vertigem de toda a paisagem). sorri-lhe e continuei a andar com o mesmo passo. não sei se a cheguei a alcançar.

22.7.06

viajar viajar viajar


De vez em quando, assim de repente, tenho saudades,
de ver coisas pelos teus olhos. A estrada, um quarto
de hotel numa vila de província, estrelas numa noite
muito escura. Penso no teu nariz, do qual gosto muito
e não sei onde estará. Em grande parte o nosso des-
tino não somos nós que o fazemos; em grande parte.
Apesar da angústia e da ansiedade, gostava muito de
viajar contigo. É bom viajar contigo. É preciso continuar
a aprender a viajar viajar viajar viajar viajar.

o teu pedro

11.5.06

Paulo

A primeira vez que dormi com ele foi em Valença. A segunda em Vila Nova de Famalicão. Em Ourique disse-me que não. Podia ter dito: " Sabes, eu gosto muito da Rita", e eu dir-lhe-ia que tudo isso estava muito certo, que estávamos muito cansados, que o melhor era irmos dormir de seguida sem sequer tomar café, que não fazia mal, que aquilo ali era outro planeta qualquer. Mas ele disse: "Sabes, eu tenho a Rita.
Eu não disse nada, senti uma grande raiva crescer dentro de mim, vontade de lhe bater e depois nada disso. Comecei a ficar triste. Disse: "Vou pedir ao rapaz da luz que cuide de mim", sem qualquer convicção. Ele só baixou os olhos e não respondeu. Não tomei café.

Os nossos quartos ficavam um em frente ao outro. Pensei primeiro em bater à porta dele e depois abri a minha. A cama estava feita e vazia. Não tive coragem de a abrir. Voltei para trás e abri a porta do quarto dele. Estava escuro, não se via nada. Mas ele devia estar a ver-me em contraluz. Não sei sequer se disse para eu entrar. Sei que deixei ficar a porta aberta para o corredor e que de repente me senti agarrada. É bom uma pessoa sentir-se agarrada assim no escuro sem ver por quem. Fizemos amor no chão. Fiquei com uma marca nas costas. Com a porta aberta. Sou tão descuidada, meu amor.


Pedro Paixão
in A noiva judia

18.3.06

Ela e só ela

Sabes o que ele me disse? Que aquilo é como a primeira namorada. Adormeces a pensar nela e acordas a pensar nela.
Eu já sabia, já te tinha dito, lembras-te?, eu já sabia mas não queria ter a certeza.
Foi assim. Telefonei ontem à hora do almoço lá para casa e a mãe, devia ser a mãe, era a mãe com certeza, disse-me que ele ainda estava a dormir. Há uma data de dias que não o via, não podia mais. Peguei no carro e fui lá.
Quando cheguei, estava a tomar duche e tive de esperar um bocadinho no quarto dele. Na parede um poster a preto e branco. No chão, a roupa da noite. Entrou silenciosamente. Estava lindo, tão lindo dentro do roupão azul escuro. Nem imaginas como ele é lindo.
Foi tomar o pequeno almoço na cozinha e depois disse-me para voltar com ele lá para cima. Fechou a porta atrás de nós mas não a fechou à chave, mas eu pensei de qualquer modo que ele me ia agarrar, beijar. Eu ainda só dormi com ele duas vezes, mas devia ser proibido fazer amor assim. Agarrou-me por dentro, sabes? Devia ser proibido. Uma pessoa não pode fazer nada.
Mas ele não me agarrou. Tomou um ar sério e disse-me para não ter medo e depois sorriu. Então começou a preparar aquilo. Fiquei muda todo o tempo. Passavam-me coisas tão depressa pela cabeça que eu não conseguia pensar em nada. Não conseguia tirar os olhos daquilo.
Depois arrumou tudo e pôs um disco, como se nada fosse. Eu fiz de conta. Passado um bocadinho chegou um amigo dele, o Tó. Beberam uma cerveja e depois o Tó foi-se embora. Ele voltou a fechar a porta e voltou a preparar aquilo e a fumar aquilo. Para atestar, disse, percebes? Eu não lhe disse nada. Ele gostava mais daquilo do que de mim. Muito mais, tive a certeza. Apeteceu-me chorar mas não chorei. Olhei o Ian Curtis que continuava no seu salto no poster e fiz como se tudo aquilo me fosse indiferente. Uma pessoa consegue.
Mas eu sei muito bem, eu é que lhe sou indiferente. Eu e tudo o resto. Menos aquilo. O que aquilo faz é tornar tudo o resto indiferente, sabes? O verdadeiro inferno.
Não me agarrou. Eu é que tive de o agarrar. Parecia um bebé a sorrir. E eu gosto tanto dele, merda. Despi-o e fiz-lhe amor e foi então, logo a seguir, que ele me disse: "Sabes, aquilo é como a primeira namorada. Adormeces a pensar nela e acordas a pensar nela."

Pedro Paixão
Viver todos os dias cansa, 95

24.2.06

História da princesa moura e do dragão azul

Esta é a história
de uma princesa moura das terras quentes do sul
e de um dragão azul - que era afinal um príncipe
das terras altas do norte

Andava a princesa desaustinada, numa noite de temporal
e absolut vodka, num reino que ficava equidistante.
(Ela não sabia do que andava à procura.)
Entrou na sua carruagem puxada por noventa cavalos e tinha apenas percorrido alguns metros quando se lhe atravessou no caminho um jovem dragão azul com figura de príncipe, molhado como um pinto por causa da chuva que caía muito forte. Ela parou, baixou o vidro da carruagem, e ele quis saber que música vinha ela a ouvir e para onde ia ela àquela hora da madrugada.

Logo aí a moura percebeu que era um dragão azul das terras altas do norte que lhe falava a sorrir, e foi sem ela se dar conta que ele a raptou, convidando-a para sua casa...
Ainda se perderam, porque o belo dragão ainda não sabia de cor o caminho de casa.
Mas a princesa deixou-se levar até ao castelo, feliz por acreditar que o dragão não lhe iria fazer mal - quem sabe seria um príncipe? (Parecia mesmo um príncipe que ela já tinha visto num filme!...)

Encontraram-se numa noite de temporal
entre o norte e o sul
e foi ela que o guiou
sem saber que estava a ser raptada

Quando chegaram ao castelo o príncipe abriu a porta devagar e entraram os dois pé ante pé, pois todos se encontravam já a dormir.
Os aposentos continuavam mergulhados na penumbra da madrugada e a princesa moura ficou a saber que no castelo não havia luz nem água, e por isso foi preciso acender uma vela.
Conversaram de música e cinema durante um bocadinho, mas o dragão dentro do príncipe começou a beijar a moura, que estava cheia de medo.
(Não é todos os dias que uma moura é raptada por um dragão azul das terras altas do norte!...)
E cheia de medo ela se foi entregando devagarinho até deixar de ser princesa, para se transformar numa sereia nos braços do belo príncipe...
Abraçaram-se muito, beijaram-se muito, mas ela temia que o dragão fosse apenas mais um sapo, e lá se ia protegendo como podia, dando muito mas não tudo.
Queria sossegá-lo, ao príncipe, mas o dragão não queria sossegar...

E foi preciso muito carinho e ternura e paciência para adormecer o príncipe e o dragão dentro dele...

Depois a sereia procurou peça a peça as suas roupas espalhadas pelo chão e foi-se vestindo devagar e sem barulho, para não o acordar.
Ela apagou a vela, tapou o príncipe adormecido e beijou-o docemente na face. Ele sorriu, sem abrir os olhos.
E a moura disse "Até logo".
Encantada.

L.A.
Coimbra, 1998

Só uma vez

Coimbra é uma cidade perigosíssima. Nunca se sabe o que pode acontecer. O mais certo é não acontecer nada. É isso que faz aumentar o perigo. Quando as possibilidades se reduzem, a intensidade do que acontece aumenta exponencialmente. Isto é uma teoria que eu tenho e que por vezes se verifica.

Entrei no Captain e vi-o. O amor tinha menos quinze anos do que eu, um menino lindo. E tinha aquele ar escocês porque tinha estado dois anos em Inglaterra a tentar estudar Biologia, mas não tinha aguentado não sei o quê. Quando demos por isso eu já lhe estava a mexer e ele já me estava a mexer. Em Coimbra é perigosíssimo. As noites duram semanas, saltam-se as estações e os corações vêm à boca para se morder. Quando saímos atravessámos um jardim de árvores muito altas e copas muito escuras e levou-me para casa dele. Uma mansão abandonada, sem electricidade nem água canalizada. Tinha chegado há pouco tempo, disse-me ele. Eu não queria saber. Achei um luxo, vinte velas acesas e uma lareira frente à cama para onde me atirou ou onde tropeçámos e caímos. É claro que agora tudo é perigosíssimo e tive de o ir acalmando como pude, devagarinho. O meu menino, eu já gostava tanto dele. E fizemos o que foi possível fazer e é sempre tanto, sempre demais. Por fim adormeceu a falar-me na mãe dele. Depois saí para ir ao encontro do meu marido que me esperava impaciente no hotel, desejando que eu o satisfizesse, o que foi um duplo prazer porque trazia ainda comigo nos olhos fechados o meu lindo escocês.
Em Coimbra é perigosíssimo. Tudo acaba sempre por acontecer. Mas só uma vez.



Pedro Paixão
Nos teus braços morreríamos, 98

27.12.05

helena

Passaram tantos por mim. Porque não ficou nenhum? Para que houvesse um teria que haver todos os outros? Para que esse passasse teriam que passar todos? Teve mesmo que ser assim?

Saio sozinha, encontro alguns amigos nos locais do costume, e volto sozinha. Dói-me muito ver a cama vazia. Parece-me injusto. Cada vez é mais difícil. Vejo as coisas do quarto: a cama branca, as duas cadeiras, as cortinas caídas. Fazem-me sentir como se eu estivesse ali a mais, como se fosse uma intrusa.

Às vezes dormem comigo. Mas é só uma infidelidade que cometem para provarem a si próprios que ainda estão muito agarrados às namoradas. Quando pedem desculpa ainda são mais miseráveis. Fico com os nomes de todas na memória.

Rogo por amor e ninguém me ouve. Mais valia não haver palavras, só suspiros e risos e choros. Talvez alguém ouvisse. Talvez alguém entendesse.

Dou comigo a rezar diante de uma parede de pedra e tenho por única resposta o eco da minha voz. Estou cada vez mais sozinha.

Ninguém me agarra e diz: “Quero-te como não é possível querer mais alguém. Leva-me contigo. Ou então eu levo-te comigo.” Não. Tocam-me mas ninguém me agarra. Querem só tocar. Batem nos vidros, riem-se e eu rio-me. E depois partem.

Estou muito cansada. O meu coração está muito pesado.

Passaram tantos por mim. Porque não ficou nenhum? Teria que ser assim, mesmo assim?



Pedro Paixão
1989

20.10.05

Saudade

Não é um vício, não, é uma vingança. Acontece quando acordo a meio da noite e estico os braços à procura e não sei que estou só. A cama é grande e só do meu lado está desfeita. Acordo à procura do corpo que faz falta e só tenho o meu que está a mais. Fecho os olhos, como se já não estivessem fechados, e o que está dentro de mim é uma ânsia. Então chegam imagens de um corpo antes de saber que é o dele. Um corpo não, pedaços de um corpo, pequenas alucinações. Duas mãos começam a agarrar-me as ancas e uma boca a bafejar-me a cara. É ele que fala. Ouço dizer-me as coisas que me diz e calo-me. Ouço-o chamar os nomes que me chamam e eu vou. Começo a desfazer-me para que me faça. O corpo que eu toco não é de ninguém. Quando não basta, repete, quando não basta repito. E depois há uma coisa que vem de muito longe e não quer acabar de vir. Vem a mim e eu não consigo ir a ela. Estou comigo. Não é um corpo, não. É um fugir. Um barulho. Qualquer coisa assim que vem, que agarra e passa. Um bicho. Não é um corpo não, porque os não há. Às vezes ouço-me gritar, ou julgar que grito e depois fico quieta como se corresse perigo.
Começo a pensar nele e acabo a pensar em mim, os cabelos desfeitos, uma ânsia sem fim.


Pedro Paixão
Vida de adulto, 92

6.10.05

HELENA

Recebo cartas de raparigas de doze anos. Querem ser cantoras e mandam beijinhos. Já não respondo. Teria de ser cruel. De resto ninguém me escreve.
Ninguém me convida que me apeteça aceitar. Saio sozinha, encontro alguns amigos nos locais do costume, e volto sozinha. Dói-me muito ver a cama vazia. Parece-me injusto. Cada vez é mais difícil. As coisas do quarto, a cama, as duas cadeiras, as cortinas caídas fazem-me sentir como se eu estivesse ali a mais, como se fosse uma intrusa.
Às vezes dormem comigo. Mas é só uma infidelidade que cometem para provarem a si próprios que afinal ainda estão muito presos às namoradas. Quando pedem desculpa ainda são mais miseráveis.
E eu continuo a cantar cantigas que só imploram, rogam amor e ninguém me ouve.
Mais valia não terem palavras, só suspiros e gritos e choros. Talvez alguém ouvisse. Talvez alguém entendesse.
É como se estivesse a rezar diante de uma parede de pedra e tivesse por única resposta o eco da minha voz. Estou cada vez mais sozinha.
Depois de cantar ninguém me agarra e diz: “Quero-te como não é possível querer mais alguém. Leva-me contigo. Ou então eu levo-te comigo.” Não. Pedem autógrafos, para as namoradas, ou para os filhos, ou para mostrarem aos amigos. Tocam-me mas ninguém me agarra. Querem só tocar. Batem nos vidros da carrinha, riem-se e eu rio-me.
Estou muito cansada. O meu coração está muito pesado.
Passaram tantos por mim. Porque não ficou nenhum? Para que passasse um teriam que passar todos os outros? Teria mesmo que ser assim?


P.